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Suspensão de Descrença: entenda esse ingrediente mágico das narrativas

Talvez você já tenha ouvido falar em Suspensão de Descrença, ou talvez não… Mas posso garantir: você está em contato com isso sempre que assiste a um filme, série, lê um livro ou joga um game.

Em outras palavras, sempre que você consome algum tipo de história fictícia.

Por mais absurdo que pareça a ideia de uma montanha flutuante, numa história de fantasia isso pode ser até bem natural

Mas afinal, o que é a Suspensão de Descrença? Bem, é simplesmente aquilo que nos faz acreditar em poderes especiais nas histórias de heróis, ou na existência de elfos e orcs nas narrativas fantásticas, ou mesmo coisas como viagens no tempo e armas laser, presentes nas ficções científicas. A suspensão de descrença é também o que permite que você assista a filmes e animações onde animais falam sem achar isso um absurdo.

É exatamente isso: SUSPENDER (interromper temporariamente) a DESCRENÇA (ceticismo, incredulidade). E você faz isso sem nem perceber.

Não se trata de algo filosófico, mas um fato observável que você vai compreender melhor ao final deste artigo.

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As mentirinhas que gostamos de acreditar

Quando começamos um filme, livro, ou qualquer mídia que conte uma história (games, animes, mangás) ficamos preparados para sermos enganados. Conscientemente, sabemos que nada daquilo é verdade (no caso de histórias fictícias). Mas nos prontificamos a acreditar nessas pequenas mentiras de bom grado.

Parece estranho (e até ofensivo) quando falo dessa maneira, mas é verdade. Veja o exemplo de StarWars: já no início somos apresentados a uma narrativa sobre um Império Galáctico e um grupo de rebeldes que roubam os planos secretos da Estrela da Morte, uma estação espacial armada capaz de destruir um planeta inteiro.

Se não fosse a Suspensão de Descrença, a simples existência da Estrela da Morte (da franquia Star Wars) seria risível (veja infográfico mais abaixo).

Até onde pude pesquisar, isso seria praticamente impossível. A existência da Estrela da Morte exigiria um gasto diário de pelo menos US$ 7 octilhões! Só para você ter uma ideia, isso é aproximadamente a quantidade de átomos que você tem no corpo. Em números, fica assim: 7.000.000.000.000.000.000.000.000.000.

Pois é… Não é pouca coisa.

Porém, quando vamos consumir uma narrativa fictícia, nosso cérebro “compra” essa ideia, aceitando com naturalidade as cenas que seguem, cheia de batalhas interestelares, alienígenas e armas laser. Então, aquela descrença natural que teríamos nessas situações é suspendida temporariamente – por isso chama-se “suspensão de descrença”.

Isso é extremamente importante para que possamos mergulhar nas histórias, e nos emocionar com elas. Graças a isso, podemos ser profundamente tocados pela morte de um personagem, mesmo sabendo que nada daquilo é real.

Abaixo, infográfico feito pelo site Ovo Energy sobre os custos reais da Estrela da Morte, de Star Wars:

Verossimilhança Externa e Interna

Ao longo das narrativas, as histórias vão construindo uma credibilidade com os espectadores, leitores e gamers. Essa credibilidade é baseada em pequenas verossimilhanças e fatos que, para quem está vendo, parecem coerentes. Ao haver uma âncora com nosso mundo (e com a realidade que conhecemos), essa imersão é facilitada. Nossa credibilidade aumenta, fazendo com que a suspensão de descrença aconteça de uma forma quase automática.

Essa credibilidade tem ligação tanto com a verossimilhança externa (o mundo real, onde vivemos) quanto com a verossimilhança interna (o mundo e a situação da história que estamos vendo).

  • Verossimilhança externa: um fato que não questionamos, pois tem a ver com nossa própria realidade. Exemplo: quando vemos um filme onde alguém sangra depois de levar um tiro.
  • Verossimilhança interna: fatos que não são reais, mas que não questionamos por estarmos aceitando a coerência construída dentro de uma história fictícia. Exemplo: um ciborgue leva um tiro e, em vez de sangue, escorre óleo de seu corpo (dentro de um universo de ficção científica, isso é plausível).

A combinação dessas duas coisas ajuda a criar a magia da ilusão, de forma que aceitemos o que estamos vendo como “real”.

Mas, mesmo em histórias fictícias é possível termos momentos em que a suspensão de descrença não funciona.

Suspendendo a Suspensão de Descrença

Não é só porque uma história acontece em um mundo de fantasias, ou porque não tem base em fatos reais, que qualquer coisa seja aceitável. A narrativa das histórias precisam correr sobre os trilhos da coerência, ou seja: dentro daquela realidade existem coisas possíveis, e outras nem tão possíveis assim.

Muitas vezes, aquela magia a que somos imersos é quebrada por pura desatenção de um roteirista ou escritor. Essa quebra da Suspensão de Descrença acontece quando vemos cenas que fazem lembrar que estamos vendo apenas uma história fictícia. Cenas que contradizem a realidade criada e nos cospem para fora violentamente, retirando-nos da imersão e da magia narrativa.

Um exemplo simples é o do filme Tomb Raider, de 2001, onde Lara Croft precisa reunir aquelas três peças do Triângulo da Luz para que não caia em mãos erradas (pois tinha um poder destrutivo descomunal). Muitas pessoas se questionaram: se esses triângulos só funcionam quando estão juntos, bastaria que o primeiro fosse destruído. Pronto, assim o poder destrutivo seria anulado já de cara, e não precisaria sair atrás dos outros.

As pessoas que questionaram isso tiveram, logo no início do filme, sua Suspensão de Descrença afetada. Isso acaba com a imersão e experiência dos mais atentos.

Segundo exemplo: você assistiu àquela animação da Disney Pixar, Wall-E? É realmente lindo e vale a pena. Mas já se perguntou de onde veio aquela chuva (na cena onde ele protege Eva desativada), já que a humanidade se mudou de lá porque o planeta ficou seco e árido?

Um terceiro exemplo que causou estranheza foi no filme “Guerra Mundial Z”, naquela cena onde uma torre de zumbis foi aumentando, aumentando… A cena até que é bem interessante, mas o problema é que a cidade fortificada foi apresentada aos espectadores como sendo preparada, ao menos no que se refere ao monitoramento aéreo. Com isso, eles teriam tempo para uma reação inicial mais rápida, antes que fosse tarde demais.

Mas, hein?

Se formos olhar para filmes (principalmente os de cenário pós apocalíptico e terror), vamos encontrar muitos exemplos onde a suspensão de descrença é quebrada, graças a atitudes inverossímeis de alguns personagens, ou outras coisas que nos fazem torcer o nariz e pensar “nossa, nada a ver!”.

É neste momento que notamos a magia se desfazendo. É quando nos lembramos de que estamos apenas vendo uma história de mentira. São os famosos “furos” que diretores e escritores tanto evitam, mas são erros que hora ou outra acabam cometendo (nem sempre é fácil aparar todas as pontinhas – a contradição é um monstrinho esperando para morder nossos calcanhares).

A Suspensão de Descrença e os Personagens

Uma última observação sobre a suspensão de descrença que farei aqui é sobre a verossimilhança dos personagens nas histórias que vemos (ou que criamos).

Quando um personagem é construído (por um escritor, roteirista, quadrinista, etc) segue-se naturalmente uma espécie de padrão de personalidade, ou seja, é fácil notarmos que cada personagem tem um comportamento dominante. Não estou falando que eles têm uma característica ÚNICA, e sim que, de todas as características, uma delas sempre se sobressai.

Por mais profundos e multidimensionais que se apresentem, existe uma espécie de “marca”, ou seja, algo que os identifica. E a suspensão de descrença também vive aí: no fato de o personagens terem atitudes coerentes com o que foi construído sobre suas personalidades, crenças e valores. É claro que eles podem nos surpreender (e devem!), mas sempre dentro de uma linha “crível”, que não nos faça pensar “aff, que mentira isso aí”.

Quando um personagem quebra um padrão abruptamente (e sem motivo), faz com que lembremos que aquela pessoa na tela é apenas um(a) atriz/ator, ou que tudo o que estamos vendo não passa de uma narrativa fictícia e um monte de letrinhas num papel.

Ou seja, suspende-se a Suspensão de Descrença ?

E você, já sentiu sua Suspensão de Descrença ser quebrada por alguma cena absurda de algum livro, filme ou série? Deixe suas experiências nos comentários ?

Aproveitando a oportunidade, gostaria de lhe convidar a suspender sua descrença lendo um de meus livros, Anjo Negro, uma ficção adolescente onde dois garotos se encontram na segunda metade do 3º ano do ensino médio: um deles está cansado de pessoas, e o outro foge delas por causa do bullying (romance LGBT). Conheça meus trabalhos clicando na imagem abaixo ?

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Lyan K. Levian

Lyan K. Levian é contista e romancista de histórias homoafetivas e homoeróticas, principalmente com foco no público que se denomina "fujoshi" e "fudanshi" (fãs de yaoi/boys love). Conheça os trabalhos de Lyan: www.lyanklevian.com

Ver comentarios

  • Suspensão de descrença.:
    A roupa do super homem.
    Se ela é feita de tecido indestrutivel., Como então pôde ser cortada e costurada?

    • Boa pergunta! kkkkkk

      Talvez seja um material vindo de Krypton (ou talvez a roupa não seja indestrutível, e ele tenha um guarda-roupas cheio delas para trocar sempre que uma estraga).

    • Simples: Exposta à kriptonita, a roupa perde sua potencialidade podendo ser reformada, cortada etc. Uma vez pronta, a kriptonita é afastada da peça. Claro que a costureira não é de Kripton. É americana.
      Que coisa, hein!!! A gente precisa explicar tudo!!! kkkk

  • Se algo que estou vendo, lendo ou seja lá o quê for, mostrar sinais de magia, elfos, dragões, desligo no ato. Suspensão de descrença só até os 7 anos. Outra coisa irritante: "Fatos reais" é pleonasmo. Se não é real, não é fato, é história.

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